POESIA: ESTRUTURA E PROCESSO
Moacy Cirne[1967]


Depois de certas aberturas teóricas e práticas, nos últimos 12 anos, a poesia brasileira afirmou-se internacionalmente. Essas aberturas representaram uma posição radical e construtiva diante do impasse gerado pelo esgotamento do verso, do lógico-discursivo, do florilégico exótico. Formas, e não formas, foram levantadas sob o enfoque do estrutural para uma maior objetivação da realidade poética brasileira.

Atendendo à uma necessidade sincrônica , mas de pouca eficiência prática (criativa) para o momento atual, que exige uma intensa luta do poeta , valores antigos foram revisados. Idéias mallarméanas e mallarmaicas foram colocadas em circulação, aliás muito justamente. Mas, o tempo de Mallarmé já passou e hoje o poeta Wladimir Dias-Pino, invertendo a ordem dos fatores e alterando o produto – embora a intensidade do resultado informacional permaneça dentro do mesmo nível funcionalizante –, afirma que “poemas se fazem com idéias e não com palavras”. E Álvaro de Sá acrescenta: “uso de palavras (somente) quando indispensável”.

Durante 12 anos a preocupação maior dos vanguardistas, e aqui não incluímos como tal certas tendências diluidoras (a poesia práxis, Poe exemplo), foi a de formular em termos exatos a importância da estrutura na obra de arte, numa abordagem revolucionária do material manipulado. Foi uma preocupação necessária, sem dúvida , pois desencadeou os vários processos informacionais de hoje nos permitem, conscientemente, partir para uma poesia mais radical e revolucionária: a poesia de processo, que – sem desprezar a estrutura, claro – procura criar novas linguagens.

Da estrutura ao processo

Para esclarecer o que entendemos por poesia de processo devemos fazer um estudo comparativo, no caso presente com a poesia concreta, apontando as diferenças e as afinidades que as caracterizam. A poesia concreta também inaugurou (e inaugura) processos, porém existem certas dúvidas teóricas que precisam ser colocadas em pauta.Antes de mais nada: nem todo poema  de processo, embora sempre concrecionando a linguagem, é concreto, no sentido empregado pelo grupo noigandres (outros diriam: raramente o é) . Entretanto, todo poema concreto, para adquirir um respeitável grau de validade, precisa encerrar um processo.
Para evitar futuros equívocos remetemos o leitor às conceituações de estrutura e processo. “Por estrutura, em seu significado literal, entendemos um arranjo espacial de elementos onde encaramos as relações espaciais com correlacionados a algum sistema de relações entre tais elementos ou entre determinadas partes e o todo” (Stanislaw Ossowiski, Estrutura de Classes na Consciência Social). O que significa: relações formais e orgânicas, dialeticamente dispostas que compõem o todo. Estrutura pode significar organismo, além de outras variantes, e engloba a forma e suas relações conteudísticas (filosóficas, sociais)  de determinados sistemas econômicos, objetos artísticos etc. No segundo exemplo tende a ser estática, formal, somente tornando-se dinâmica através do processo.

E o processo, ao contrário, representa a própria dinâmica, já que implica em transformismo e feitura (elaboração) poética. Convém distinguir, para efeitos operatórios, processo informacional de processo estético, assim como processo de procedimento – o que faremos mais adiante. Não esqueçamos que toda e qualquer obra de arte contém um processo (fundamentado na estrutura): em poesia consideramos principalmente o autor que está sempre criando processos diferentes. Poderíamos, portanto, classificar dois tipos de autores-criadores: 1) os que inventam um processo novo para cada obra nova; 2) os que inventam um dado processo e ficam nele até levá-lo às últimas conseqüências. O segundo caso é comum na literatura e no cinema, duas artes diferentes da poesia pela própria natureza do procedimento a ser empregado.

O processo informacional consiste no processo em si, despojado de qualquer significação simbólica, podendo ser avaliado pela taxa de inventividade e originalidade que testará sua funcionalidade perante a evidência do consumo. “ Um elemento de informação, para contribuir à informação geral da comunidade, deve dizer qualquer coisa de substancialmente diferente do patrimônio de informação já colocado à disposição da comunidade” (Norbert Wiener, citado por Umberto Eco, in A obra Aberta). Êsse elemento corresponde à(s) estrutura(s) formadora(s ) do processo. A funcionalidade contida no processo, para nós, é mais importante do que a funcionalidade da estrutura: o processo seria, digamos assim, a “marca registrada” do poema. Processo estético, por sua vez, consiste nos elementos estruturais – e suas relações com o procedimento artístico – que formam o processo informacional, isto é, poema.

Quanto ao procedimento poderemos enquadrá-lo em dois planos. 1) o procedimento no sentido mais comum , identificável na teorização de V. Chklovski (que, em A arte como procedimento, de 1917, estudou a singularização em Tolstoi, Gogol e outros), consistindo a maneira pela qual o material manipulado pelo artista sofre as variações formais que vão determinar as estruturas e os processos; 2) o procedimento num sentido mais específico, consistindo na redundância do processo. Isto é: o procedimento daqueles que permanecem sempre no mesmo processo, embora às vezes tentem radicalizá-lo. Exemplos nacionais: Mário de Andrade, Manuel Bandeira. Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima e muitos outros.

Esclarecidas algumas questões, partamos agora em direção às diferenças e afinidades existentes entre a poesia concreta e a poesia de processo. De um lado, Décio Pignatari, Augusto de Campos, Haroldo de Campos, José Lino Grunewald, Ronaldo Azeredo, Luis Angelo Pinto. Do outro, Wlademir Dias Pino, Álvaro de Sá, Neide de Sá, Anselmo Santos, José Luis Serafini, os poetas mineiros, os poetas novos do Rio Grande do Norte 1. Naturalmente que não existe uma rigidez e/ou uma oposição entre eles, e podemos dizer que Décio Pignatari e Augusto de Campos, por exemplo, quase sempre fazem poemas de processo, assim como Wlademir Dias-Pino – participante da I exposição de Arte Concreta em 1956 – faz uma poesia marcada pela mais rigorosa e disciplinada concreção da linguagem.

Contudo, as diferenças existem.

Da poesia concreta à poesia de processo
 
Os poetas concretos sempre se voltaram para o problema da estrutura, enquanto Wlademir Dias-Pino e os demais citados hoje se voltam para o problema do processo. Para os primeiros, o processo esteve (e está) em função da estrutura – o processo subordinado à estrutura – ; para os segundos, a estrutura está em função do processo – a estrutura subordinada ao processo. Basta verificar os principais textos teóricos dos concretos, ou seus depoimentos, para que sintamos a preocupação (importante) em relação à estrutura: “ Realmente, apoiado verbi-vocovisualmente em elementos que se integram numa consonância estrutural, o poema concreto agride imediatamente , por todos os lados, o campo perceptivo do leitor que nele busque o que nele existe: um conteúdo-estrutura” (Haroldo de Campos, Teoria da Poesia Concreta, p. 79). Ou ainda: “A definição da estrutura que redundará no poema será o momento exato da opção criativa” (idem, p. 91).

Um depoimento de Décio Pignatari de 1957 (in Teoria da Poesia Concreta, p. 57), também é esclarecedor ao mesmo tempo que nos remete para outro ângulo da questão: “....os pontos cardeais para a realização de uma poesia  concreta são, Mallarmé (Un Coup de Dés), Pound, Joyce e Cummings – porque foram estes os que mais se detiveram no problema da estruturação dinâmica do poema,  que é o problema que mais no preocupa”.  O problema da estrutura, como já vimos, está na raiz da própria poesia concreta. Mas, na verdade, estrutura dinâmica implica em processo , pois é o processo que vai dinamizá-la: poemas como LIFE (D. Pignatari) e ôlho por ôlho (A. de Campos) contém estruturação dinâmica (aberta) na medida em que inauguram processos informacionais; o mesmo não podemos dizer de servidão da passagem (H. de Campos), sangueareia (A. de Campos), durassolado (J. L. Grunewald).

Em um artigo de 1956 Augusto de Campos escreveria: “ Um Coup de Dés fez de Mallarmé o inventor de um processo de composição poética cuja significação se nos afigura comparável ao valor da “série”, introduzida por Schoenberg, purificada por Webern, e, através da filtração deste, legada aos jovens músicos eletrônicos, a presidir os universos sonoros de um Boulez ou um Stockhausen. A esse processo definiríamos, de início, com a palavra estrutura, tendo em vista uma entidade onde o todo é mais que a soma das partes  ou algo qualitativamente diverso de cada componente” (in Teoria da Poesia Concreta, p. 15)

Pelo que já foi dito acima, A. de Campos referia-se a processo estético, que pode gerar a idéia de progresso: a culturmorfologia. E, mais do que objetivamente, processo subordinado à estrutura. Para o poeta que luta pela invenção de processos informacionais, o processo estético tem um valor secundário. Ambos podem existir simultaneamente, completando-se na estrutura, mas essa junção não irá tornar mais válido o processo inaugurador.

Reforçando a nossa posição crítica, Haroldo de Campos – obra citada p. 78 – escreveu: “ Saber ver e ouvir estruturas será pois a chapa para a compreensão de um processo concreto”.

Hoje nós diríamos, parafraseando-o:

“Saber ver e sentir processos será pois a chave para compreensão de um processo”. Poderíamos também parafrasear Décio Pignatari quando, na Teoria da Guerrilha Artística (1967) afirma: “Só estrutura nova é significado novo”: “Só processo novo é significado novo”.

Outra diferença: a poesia concreta sempre foi planificada, rigorosa, programática, muitas vezes limitando o campo de ação de seus autores. À poesia de processo, enquanto isso, só interessa a criação de novos processos, não exibindo nenhuma tabela de proibições regulamentando a prática poética. O resultado é simples: os poetas concretos, ultimamente, têm criado apenas, cada um, dois ou três poemas por ano; já Álvaro de Sá, nestes últimos dois anos, elaborou cerca de 100 poemas, todos sob o signo da experimentação. Os poetas concretos alegam que o importante é a qualidade, porém quando temos qualidade + quantidade abre-se uma perspectiva mais sólida para a afirmação da vanguarda.

Entre as principais afinidades: todos realizam obras marcadas pelo experimentalismo consciente, capaz de derrubarem as estruturas burguesas do nosso mundo (pelo menos existe, a priori, uma intencionalidade intelectual nesse sentido); todos realizam obras voltadas para a concretude informacional. No caso do Grupo Noigandres, como não poderia deixar de ser, essa concretude é mais acentuada – é mais concreta. Certos poemas, como o 1822, de Nei Leandro de Castro, e o signo, de Dailor Varela, inauguram processos (o primeiro é, ao nosso ver, um dos mais bem realizados poemas participantes já elaborados no Brasil) – por isso mesmo são verdadeiros poemas processo –, mas também não deixam de ser verdadeiros poemas concretos, inclusive enquadrando-se dentro de um dos pontos de seu plano-piloto: “O poema concreto comunica a sua própria estrutura: estrutura-conteúdo. O poema  concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas”.

Existe um outro aspecto que, posteriormente, poderá ser questionado, em se tratando de poesia concreta e poesia de processo: o objeto-poema.

Os concretos nunca partiram para a experiência em objetos. Wlademir Dias-Pino, Neide de Sá, José Luís Serafini, Anselmo Santos, Álvaro de Sá, todos eles estão criando objetos-poemas que exigem a máxima participação do público. E, praticamente, constituem as suas obras mais radicais, como é o caso do poema gustativo, de Álvaro de Sá. Se atentarmos para a poética de Umberto Eco concluiremos que esses poemas-objetos são mais abertos do que qualquer poema concreto realizado até hoje. 

Poemas de processo: exemplos

O exemplário da poesia de processo é o mais variado possível: abordando-o verificaremos, depois das considerações teóricas, suas características práticas. Tomemos como exemplo inicial o poema 1822, de Nei Leandro de Castro: a data convencional da independência política do nosso país formada d(versus)e marcas de produtos econômicos americanos e europeus, através da colagem. Em sua primeira elaboração o 2 final consta das seguintes marcas: coca-cola, telefunken, signal, shell, mobiloil, kodak, GE, lux, remington, golette, aparecendo ainda o logotipo da light. Todavia, como para nós o que importa é o processo, qualquer reprodução formal do poema não precisa conter obrigatoriamente no seu final esses mesmos elementos temáticos, podendo – inclusive – apresentar outros que tenham o mesmo significado.

O LIXO, objeto-poems de Álvaro de Sá, consta de um pequeno (e comum) depósito de lixo, tendo ao seu lado uma estante com alguns livros poemas discursivos, cujas páginas já poderão estar soltas. O poema exige a participação do público, que – não gostando dos poemas selecionados arbitrariamente pelo autor – terá a liberdade de jogá-las no lugar mais apropriado para aqueles que ainda hoje são poetas discursivos: o depósito de lixo. Esse poema, cuja característica maior é a de inaugurar um determinado processo informacional, poderá ser reproduzido em qualquer outro lugar ou cidade com livros diferentes de poetas discursivos.  Natural mente, e por um denominador comum que define a vanguarda, os autores selecionados serão praticamente os mesmos com ligeiras variações.

Salientemos, todavia, que nem todo poema processo acarreta essa liberdade de reprodução formal. Alguns – justamente aqueles que mais se aproximam da concretude estrutural inserida na poesia do Grupo Noigandres – não permitem que a reprodução seja tão livre: SOLIDA, de Wlademir Dias-Pino; o ôvo, de José Luis Serafini; 12x9, de Álvaro de Sá; signo, de Dailor Varela; angústia , de Neide Sá; Cherrilheiro, de Anselmo Santos.

Por tudo o que afirmamos – e pelo o que poderá ser afirmado ainda mais (afirmado e discutido) –, o leitor verificará que a inauguração do processo é fundamental, indiscutível mesmo, para os poetas citados por nós. Da estrutura ao processo, do processo à vida: os movimentos operacionais e criativos da poesia.

Notas:

1 O movimento de poesia nova no Rio Grande do Norte surgiu em dezembro de 1966 quando foi organizado uma exposição de poemas-cartazes em homenagem aos dez anos do lançamento oficial da poesia concreta. Na oportunidade foi lançado um manifesto – “por uma poesia revolucionária, formal e tematicamente” – assinado por Anchieta Fernandes, Dailor Varela, Fernando Pimenta, Jarbas Martins, João Charlier, Juliano Siqueira, Moacy Cirne e Ribamar Curgel. Entre outras coisas, o manifesto afirmava. “ A nossa concepção do real faz com que não aceitemos mais a província como um motivador de angústias improdutivas e esquemas superados.

Caderno de cultura. Jornal o Sol. 9 de novembro de 1967.